À prova de alfinetadasPra começo de conversa, vou logo avisando que nem adianta cutucar o leão com vara curta que os tempos são de calmaria, Clara Beauty. E quer saber? Para mim sempre foi assim em matéria de futebol. Tenho um time do coração, outro de ocasião e liberdade suficiente para torcer por quem estiver jogando bonito. Contra o outro não! Não sei ser assim. Melhor é que nem vejo polêmica nisso. Acompanho de uma certa distância o desenrolar das questiúnculas do futebolzinho nosso de cada dia e às vezes dá até pra chegar mais perto, como foi o caso da entrevista recente que fiz com o novo técnico do Fortaleza, o Daniel Frasson. Simpático, com o sorriso de quem chega, me disse que disposição pra fazer tem, falta é saber se vai poder, afinal vem aí uma nova diretoria coisa e tal. Nenhuma novidade, convenhamos.

Mas essa prosa me fez lembrar da rua de areia em dia de chuvisco e da fuzarca em torno do triângulo e da
bila. Pular poça de lama, fazer guerra de mamona, escapulir no pega-pega, tudo valia em meio àquela algazarra. "Com os diacho de tanto menino gritando!" Bola, bola mesmo, só pro carimba. E tinha que ser daquelas meio murchas, pesadas, que são as que deixam o sapecado que dá graça à brincadeira. Daí que de futebol nem uma lembrancinha.
Mas tinha a finada, que antes de se finar, vivia a desfilar a blusa poída e colorida de listras em azul, vermelho e branco. Pra completar o visual, cabelo preso no pente, cocó repetido e o short de cintura alta, mostrando as perninhas de
nambu. Casar, nunca quis. E haja maldarem que não gostava de homem, a torcedora. A voz fina e fanha ganhava volume em dia de decisão. Depois do time do coração, gostava mesmo era duma zinebra, bebida e cuspida no pé do balcão. E fazia uma cocada de dar água na boca de qualquer vivente.
Acho que foi daí que percebi a seriedade da questão: a doceira, doente pelo Leão, agradava só deus e o mundo com seus quitutes. Deixasse os entreveros das questões futebolísticas de lado e ninguém sequer perceberia que ali tinha um motivo pra discordância. A coisa mais civilizada.

Do outro lado do quarteirão ficava o seu Manoel, misto de rezador e macumbeiro do bairro. Ao menor sinal de quebranto ou mal-olhado lá ia ele levando aquela pança enorme pra tudo quanto era recanto que precisasse de amparo. As folhas de
pião-roxo exauridas depois da reza eram a prova do serviço feito. Era mais um simpatizante do time. Diz até que resolvia o placar só na conversa com os santos-orixás.
Que exemplos, hein! E sem nem precisar passar por milimétrica pressão familiar. Sim, porque tem torcedor que chega a deserdar filho que ousa se desencaminhar. Mas para completar, papai também era tricolor. Nunca foi a estádio, não sabia um nome de jogador, mas gostava assim mesmo. Aprendi assim: gostar simplesmente, sem cobrança nem mágoa.

Tá certo que durante algum tempo meu time era um sujeito meio raquítico, docemente apelido de
Galinho de Quintino. Tinha álbum, revista, caderno riscado do começo ao fim. Mas simpatizo com o Fortaleza Esporte Clube desde os primeiros dias de entendimento de que uma bola é um troço redondo e que serve pra botar um mói de besta no meio de um baita pedaço de chão gramado pra correr. E, obviamente, percebi depois que não era só isso. Pra estragar tudo tem os cartolas, a CBF, a grana, o patrocinador, a Globo, os recalques e a selvageria das torcidas. Enfim. Mas nem por isso deixo de achar, feito besta, um negócio bonito de se ver o estádio lotado e a galera a gritar: Uuuh! Arrepia e alimenta.
Imagens:
bila / bolinha de gude - aqui
pião-roxo - aqui
Zico - aqui