Anjo cego
Aconteceu naqueles dias de Natal que a professora da escolinha da favela resolveu também comemorar o nascimento de Jesus Cristo, o Salvador. Planejou gruta, manjedoura, pastores, anjos, com fitas, trajes e asas emprestadas. Um dos meninos faltou e de repente entra na classe, com seus oito anos, o Zé, vestido de anjo, a vestimenta que sobrara. A reclamação foi geral. ``O Zé não pode representar vestido de anjo porque não existe anjo cego.'' A professora ficou atônita, sem saber o que fazer. Cheia de compaixão fitava a criança. Pela primeira vez, via o menino com toda sua beleza e alegria, com trajes brilhantes de cetim azul e branco cobrindo as roupas feias, remendadas e apertadas que vestia. "Fessora, deixe eu ser anjo. Eu cubro o buraco do olho com uma fita.
A menina mais inteligente da classe perguntou: "Tia, Deus não faz anjo cego. Por que faz menino cego?'' O coração da professora apertou. Como responder sem comprometer Deus? Ainda bem que sabia a história do Zé! O olho apodreceu porque faltara uma simples gota de antibiótico na hora certa. Por mais que as famílias da favela pagassem impostos, não havia um posto médico, uma escola pública, água tratada para beber, caminhão levando lixo, delegacia, iluminação pública. Pagavam imposto quando riscavam um fósforo, mastigavam uma rapadura, comiam uma banana, acendiam a lamparina, andavam de ônibus, compravam um remédio, um pedaço de pano. Um governo justo diria: ``Não vou cobrar imposto deste povo pois não vou lhe levar nenhum benefício nem civilização.''Crianças, não foi Deus que cegou o Zé. Na nossa favela há milhares de crianças e nenhum posto médico. Quando o olho do José inflamou, faltou uma gota de antibiótico na hora certa. Ele vai ser anjo. Cantemos Noite Feliz.''
Do olho bom do Zé, brotavam lágrimas de alegria. O outro, como uma caverna acusadora, abrigava só trevas, dessas que saem dos corações insensíveis dos que permitem que haja favelas e se beneficiam com impostos pagos pelos miseráveis.

Feliz Natal e lembrem-se do aniversariante